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29 de setembro de 2020

Ideias para uma reforma tributária consciente

Artigo publicado originalmente no blog Fio da Meada do Valor Econômico no dia 15 de setembro de 2020.

Mais uma vez, o capitalismo se reinventa diante das suas contradições, e isso deve repercutir no sistema tributário.

(Fazendo curta uma histórica longa…) Em meados da década de oitenta do século XX, teve início a disputa conhecida como Debate FriedmanFreeman. O primeiro, prêmio Nobel de economia, afirmara que a função social da empresa é gerar valor aos seus acionistas; o segundo, filósofo e professor de administração de empresas, contestou, cunhando a expressão “capitalismo de stakeholders”, isto é, a função social da empresa é gerar valor para todos os seus stakeholders. Praticamente vinte anos depois, o professor de marketing Raj Sisodia, com alguns parceiros de pesquisa, “descobriram” que empresas com pouco investimento em marketing performavam tão bem quanto empresas cujos gastos com publicidade e propaganda eram vultosos. O que explicava o desempenho destas últimas? Exatamente a gestão voltada aos stakeholders. Essas empresas foram, então, chamadas de “empresas humanizadas” (firms of endearment). Uma dessas empresas era a Whole-Foods Market, criada e administrada por John Mackey. A união entre o professor Sisodia e o empreendedor Mackey revelou os princípios do Capitalismo Consciente.

Paralelamente, desde fins da década de 1970, cresceu nos estudos em especial de administração a preocupação com a responsabilidade social das empresas, contribuindo de maneira embrionária com o que hoje é conhecido pela sigla ESG (environmental, social and governance), traduzido como ambiental, social e governança (ASG), atributos das empresas do século XXI.

Essa tendência se expandiu e extrapolou as fronteiras da economia da empresa para a macroeconomia. Em recente texto, a economista Kate Howard reuniu vários estudos e propôs novos critérios para o crescimento de um país: de um lado, deveria ser garantida a proteção social mínima a todos os cidadãos, de outro, a produção de bens e serviços não poderia ultrapassar o limite ecológico do Planeta (ela apresentou esses dois critérios como círculos, um menor e outro maior, o que fez aparecer uma rosquinha, daí ser chamada de economia Donut). Vê-se, então, os mesmos atributos social e ambiental presentes na condução político-econômica dos países e de maneira global.

Considerado esse quadro macroeconômico e da economia da empresa, como poderíamos pensar uma reforma tributária para o capitalismo consciente? Vão aqui duas ideias (poucas, em razão do espaço, mas fica o convite à reflexão).

Inicialmente, do lado da contenção do crescimento econômico aos limites ambientais do Planeta, o sistema tributário deve induzir o consumo consciente, de modo a privilegiar bens reciclados e reutilizados, intangíveis e serviços, além de bens comuns e negócios circulares, ao mesmo tempo em que desincentive bens danosos ao meio ambiente. Do lado da garantia de uma proteção social mínima, é imperioso que o sistema tributário busque a justiça distributiva, isto é, que funcione como um instrumento de distribuição de dignidade humana (mais do que renda, portanto). Para ambos os casos, deveríamos perseguir a “progressividade”: quer na tributação do consumo (por exemplo, quanto maior o consumo de energia elétrica ou água, maior a tributação desses “bens”), quer na tributação da renda (por exemplo, reforçando as faixas de alíquotas do imposto sobre a renda das pessoas físicas) e quer na tributação do patrimônio (por exemplo, o imposto sobre heranças).

Adicionalmente, a estrutura da tributação deveria ser deslocada da pessoa jurídica para a pessoa física. Os tributos devidos pela pessoa jurídica, sejam os de consumo ou de renda, impactam todos os stakeholders de maneira semelhante, evitando a aplicação seletiva a cada interesse envolvido. Reduzir a tributação sobre a atividade comercial beneficiaria o consumo, especialmente de produtos necessários à sobrevivência de todos (mínima proteção social), sendo que o consumo excessivo seria desincentivado pela mencionada progressividade. Em complemento, a transferência da tributação sobre o lucro da pessoa jurídica para a distribuição de dividendos, focando na carga tributária dos sócios, reduziria a cunha fiscal dos demais stakeholders, permitindo o investimento e a produção de bens e serviços preferencialmente de tecnologia verde (ambientalmente sustentáveis).

Enfim, precisamos de uma mudança de paradigma. Reconheço que não é tarefa fácil, porém, entendo que deveríamos aproveitar a oportunidade da discussão sobre reforma tributária, no nível constitucional, que está em tramitação no Congresso Nacional.