Conteúdo Jurídico

5 de julho de 2022

Os valores contarão mais para as empresas

Ensina a Teoria Tridimensional do Direito, pensada e estruturada pelo jurista brasileiro Miguel Reale, que o “fato” forja a “norma”, em sua dimensão social e sociológica, e os valores adicionam à norma a sua vertente ética e moral. Neste sentido, o positivismo jurídico se converte em algo superior à vigência e à eficácia normativa que pode limitar as sociedades dentro de preceitos desprovidos de valores.

A governança está em tempos de ESG, já sabemos. Isso é muito condizente com os desafios crescentes que as empresas estão a enfrentar, como parte integrante das sociedades e, por que não dizer, do mundo. Do financismo atual o mundo terá, inexoravelmente, de centrar os seus processos econômicos no ser humano e na Terra. Uma questão de sobrevivência ou auto aniquilação. A pandemia deu raios e sentido a esta visão que não é mais utópica.

As políticas das empresas deverão ser tornar os escudos de valores que possam engendrar mudanças estruturais na sociedade e não mais somente para os seus próprios stakeholders. Os efeitos das políticas empresariais apenas terão sucesso se combinadas em ampla alteração dos valores sociais e econômicos. De que adianta uma empresa estar engajada nas suas próprias políticas se estas não servirem ao todo, ou seja, terem valores que importem aos outros. As fronteiras das empresas não são mais a jurisdição de seus dirigentes e acionistas, muito embora, por exemplo, no Brasil ainda prevaleça a visão patrimonialista. De fato, a relativização do poder tecnocrático e econômico será cada vez mais marcante vez que os interesses coletivos e difusos precisam ser necessariamente atendidos para justificar, ética e moralmente, os resultados empresariais.

Por óbvio, se deve reconhecer que isto ainda não está a acontecer completamente, apenas verifica-se que os primeiros sinais estão a despontar no horizonte – que alguns tentam não enxergar. Todavia, a sustentabilidade empresarial dependerá desta mudança cultural nas empresas e seus dirigentes. Se antes as preocupações rodeavam as variáveis financeiras, táticas e estratégicas, doravante, a sustentação das empresas ganhará uma dimensão social crescente e determinante para o seu “valor de mercado”. Aqui não cabem ilusões.

A tecnologia e as políticas de inovação serão essenciais ao processo descrito acima. A título de exemplo, a utilização crescente de dados públicos e privados para a conformação e estruturação das políticas de sustentabilidade são essenciais a este processo. Isto significa que o benefício do uso de dados terá de ser compatível com o respeito aos direitos individuais e coletivos relacionados ao tema. Todavia, é possível, inclusive, que as normas nacionais e supranacionais relacionadas com este tema estejam superadas, mesmo tendo sido democraticamente expedidas há relativamente pouco tempo pelas jurisdições europeias e estadunidense, para citar dois dos principais exemplos. Por aqui, a LGPD ainda patina e os riscos em torno dela estão muito aquém de serem dirimidos pelas empresas.

Assim, o valor da “privacidade” terá de ser revisto vez que as dimensões sociais e políticas como um todo estão sob forte escrutínio dos poderes e das jurisdições. As discussões sobre open banking, open health e open issurance provam o quão duros são os temas para os atuais preceitos de privacidade. Há, ainda, toda a discussão sobre as denominadas fake news e a proteção da mídia enquanto uma instância republicana da “liberdade de opinião”.

O risco maior que as empresas terão de resguardar é a coesão social e política. Sabe-se que num contexto em que a diversidade do gênero humano se amplia e, mais importantemente, passa a se manifestar com intensidade crescente, os choques culturais, éticos e morais serão maiores. No centro deste processo não estarão somente os Estados Nacionais, mas também as empresas. Portanto, aquelas que não estiverem culturalmente preparadas, em termos de valores e de fortalezas, para atuar na defesa dos seres humanos serão desvalorizadas e poderão não sobreviver.

A forma de acelerar ou mesmo iniciar um processo de mudanças estruturais da cultura empresarial é estabelecer políticas e programas centrados em aspectos básicos dos direitos humanos. Não existe nada mais convertedor de percepções preconceituosas, racistas ou ignorantes das mudanças em curso do que fazer as coletividades, inclusas as empresariais, se olharem no espelho e se reconhecerem como parte de um todo.

Na esfera política, as empresas terão também de sair da sua visão tecnocrática, essencialmente desprovida de valores, para enxergar mais além que o seu próprio cotidiano financeiro, seus investimentos, seus produtos e clientes. Estamos num tempo de olhar para fora e vermos o que nós podemos fazer pelos outros, além de nós mesmos. Isto não é mais algo deontológico, normativo e jurídico. É algo baseado em valores éticos e humanos.