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27 de julho de 2021

Os dois lados da moeda da corrupção

A origem do brocardo pecunia non olet remonta ao Império Romano. Naquela época, o Imperador Vespasiano havia instituído a exigência de um tributo pela utilização das latrinas públicas, no entanto, seu filho, Tito, questionava a arrecadação do dinheiro em razão da origem suja. Como resposta, o Imperador mandou o seu filho cheirar o dinheiro arrecadado das latrinas e, nesse exato momento, ao ver a reação de surpresa dele, proferiu a frase pecunia non olet (o dinheiro não tem cheiro).

Passaram-se séculos, mas o brocardo continua “vivo”. Na seara tributária, tornou-se um princípio para justificar a tributação do resultado de atos ilícitos, pouco importando a origem do dinheiro para fins de arrecadação: se for auferida renda, por exemplo, resultado de alguma atividade ilícita, esta deve ser tributada. O raciocínio não poderia ser diferente, seja no âmbito tributário (pela ocorrência do fato gerador), como no âmbito ético e moral (não pode ser “prêmio” para quem pratica o ato). Mas há dois lados da moeda: se o resultado de eventual ilícito pode ser tributado, as despesas ilícitas poderiam ser deduzidas?

São noticiados hoje grandes escândalos de corrupção, muitos envolvem o pagamento de propina (corrupção ativa) para obtenção de benefícios (como contratos públicos, certidões, abrandamento de fiscalizações etc.). Nesse sentido, cresce a discussão sobre o enquadramento desses pagamentos de propina como despesas operacionais e, portanto, dedutíveis para fins de IRPJ.

Deve-se, aqui, fazer uma breve digressão histórica: antes da década de 70, era comum os países permitirem (não punirem), dentro do seu ordenamento jurídico, o pagamento de propina a agentes públicos estrangeiros. Este cenário mudou após os EUA editarem o Foreing Corrupt Practice Act – FCPA em 1977, sendo, a partir desse momento, tal prática caracterizada como ilícita no país. Contudo, os demais países continuavam a não condenar tal conduta e, ainda, alguns países Europeus (1) , permitiam legalmente a dedução dessas despesas.

Nesse contexto, por meio de forte pressão internacional encabeçada pelo EUA, foi promulgada, em 1997, a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais pela OCDE, ratificada pelo Brasil em 2000. Ademais, o Brasil também ratificou a Convenção Interamericana Contra a Corrupção e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, respectivamente, em 2002 e 2006, todas incorporadas ao ordenamento jurídico pátrio, ensejando, posteriormente a promulgação da Lei Anticorrupção brasileira.

No que tange à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, esta discorre expressamente acerca da dedução tributária relativa a gastos com suborno (2); entretanto, incumbe ao Estado ditar as regras pertinentes ao tema, o que não foi expressamente tratado pelo Brasil.

Por conta dessa suposta liberalidade de cada estado, existe corrente sustentando que, ainda que as deduções de despesas com subornos e propinas sejam repudiadas internacionalmente, as convenções não as proíbem, ao contrário, em respeito à soberania, deixam a critério do Estado regular a matéria e, ainda, sustenta a argumentação no sentido de que não poderia o tributo ser utilizado como sanção por ato ilícito, por contradição a própria acepção legal.

Em alguns casos, ainda, a dedutibilidade é fundamentada na institucionalização da corrupção em determinados setores, o que justificaria sua qualificação quanto a “usualidade ou normalidade” dessas despesas. Não se pode, entretanto, esquecer do princípio nemo auditur propriam turpitudinem allegans (ninguém pode se beneficiar da sua torpeza).

No âmbito administrativo, alguns acórdãos do CARF já demonstram um entendimento contrário aos contribuintes, o que caminha de acordo com a melhor prática internacional.

O tema é complexo e merece uma análise mais aprofundada de cada caso concreto, todavia, a resposta parece estar na interpretação sistemática de todo ordenamento jurídico, o que envolve desde as convenções ratificadas pelo Brasil, a norma anticorrupção, os princípios constitucionais de livre concorrência, além da própria legislação tributária nacional.

 

(1) França, Grão Bretanha e Alemanha, esta última permitia inclusive a dedução de propinas pagas a agentes públicos nacionais.

(2) Art. 12, 4. Cada Estado Parte ditará a dedução tributária relativa aos gastos que venham a constituir suborno, que é um dos elementos constitutivos dos delitos qualificados de acordo com os Artigos 15 e 16 da presente Convenção e, quando proceder, relativa a outros gastos que tenham tido por objetivo promover um comportamento corrupto.