
Direito Digital: o Código Civil vai (enfim) entrar no século XXI?
Por: Elisa Figueiredo e Victória Soranz
Após intensos debates ao longo de mais de um ano e meio, foi apresentado ao Senado Federal, no dia 31 de janeiro de 2025, o projeto de reforma do Código Civil – Projeto de Lei n° 4, de 2025 (“Projeto). A proposta tem como base o anteprojeto elaborado por uma comissão de juristas, constituída a pedido do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em um de seus últimos atos na qualidade de presidente da Casa Legislativa.
Entre inúmeras propostas de alteração e atualização do conjunto normativo, o Projeto sugere alterações significativas em diversas áreas do direito, como direito de família, sucessões, dívidas e prescrições (apenas para nomear algumas). Além disso, e como uma grande novidade, o Projeto prevê a criação de um novo Livro dedicado ao Direito Digital, abrangendo desde princípios gerais até normas específicas aplicáveis ao ambiente virtual. A medida busca adequar os instrumentos jurídicos às transformações sociais e econômicas, especialmente em razão da digitalização e dos avanços tecnológicos.
O Projeto define o contrato digital como “todo acordo de vontades celebrado em ambiente digital, incluindo, mas não se limitando a contratos eletrônicos, pactos via aplicativos, e-mail, ou qualquer outro meio tecnológico que permita a comunicação entre as partes e a criação de direitos e deveres entre elas, pela aceitação de proposta de negócio ou de oferta de produtos e serviços”.
Portanto, compreende-se que qualquer manifestação de vontade realizada em ambiente digital, seja por e-mail, interações em aplicativos de mensagens, redes sociais ou outras plataformas, poderá ser considerada como evidência válida para a formação do acordo.
Além disso, o Projeto dispõe que o contrato formalizado por meio digital é considerado celebrado quando existir a clara intenção de contratar, podendo esta ser feita através de “manifestação expressa por cliques, seleção de opções em interfaces digitais, assinaturas eletrônicas, ou outros meios que demonstrem claramente a concordância com os termos propostos.”
A partir dessa possível nova disposição a ser incluída no Código, surgem dúvidas quanto aos limites das manifestações digitais: seria o “joia” (👍🏻) no WhatsApp capaz de ser caracterizada como demonstração da vontade? As chamadas “figurinhas” seriam capazes de desempenhar papel determinante a ponto de criar, modificar ou extinguir obrigações contratuais?
Ainda que manifestações informais, como emojis, figurinhas ou reações em aplicativos de mensagens, possam refletir intenções subjetivas, sua validade jurídica dependerá da análise do contexto, da conduta das partes e da existência de outros elementos que comprovem a intenção inequívoca de contratar.
O que o Projeto propõe, portanto, não é a validação automática de qualquer gesto digital como contrato, mas sim o reconhecimento de que os sinais emitidos digitalmente — desde que demonstrem de forma clara a concordância com os termos pactuados — podem servir como indícios relevantes na interpretação da vontade das partes.
Além disso, há de se ponderar que o modo tradicional de firmar contratos não foi substituído pela tecnologia. O inciso III do mesmo artigo prevê que o contrato digital será formalizado quando “atender aos requisitos de forma e de solenidade previstos em lei, quando for o caso, e incluindo a identificação das partes e a assinatura eletrônica, quando necessária”. Isso significa que, embora os avanços tecnológicos estejam alterando as relações sociais, de forma que seus impactos, inevitavelmente, também tenham reflexos em atos e negócios jurídicos, a liberdade na celebração dos pactos não prevalecerá quando a lei estabelecer disposições ou formalidades específicas.
Nesse sentido, era desejável e necessário que o Projeto também se debruçasse sobre as diferentes modalidades de assinatura eletrônica. A assinatura manuscrita, tradicionalmente empregada como meio mais consolidado e difundido de atestar a ciência e anuência das partes, passou a coexistir com mecanismos digitais de autenticação, impulsionados pela crescente digitalização das relações jurídicas.
Conforme o Projeto, o ordenamento jurídico passa a reconhecer três espécies de assinatura eletrônica, classificadas de acordo com o grau de segurança e confiabilidade que proporcionam: (i) a simples, que permite identificar o autor do documento e vincular sua identidade ao conteúdo assinado; (ii) a avançada, que, mesmo sem utilizar certificados emitidos pela ICP-Brasil, adota mecanismos capazes de comprovar a autoria e preservar a integridade do documento eletrônico, desde que aceitos pelas partes ou por quem for confrontado com o documento — sendo possível, ainda, verificar se houve qualquer alteração posterior; e, por fim, (iii) a qualificada, que se vale de certificado digital emitido no âmbito da ICP-Brasil, conferindo o mais elevado grau de autenticidade e segurança à manifestação de vontade no ambiente digital.
Verdade seja dita, o tema começou a ser regulamentado no Brasil pela Medida Provisória 2.200-2¹, de 24 de agosto de 2001, que estabeleceu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), servindo como base para o funcionamento do sistema nacional de assinaturas eletrônicas qualificadas. Posteriormente, a Lei nº 14.063/2020² definiu as diferentes espécies de assinatura eletrônica e estabeleceu o seu uso em interações com entidades públicas, bem como em determinados atos praticados por pessoas jurídicas, promovendo maior clareza conceitual e previsibilidade jurídica.
Mais do que uma mera atualização normativa, a proposta representa um passo importante para garantir segurança jurídica nas interações digitais, oferecendo parâmetros claros para a formação, validade e eficácia dos atos praticados em ambiente virtual. Sem esse avanço, o risco é manter um descompasso entre a realidade vivida e o direito aplicado, podendo trazer insegurança para as relações jurídicas.
A inclusão do Direito Digital no Código Civil é mais do que oportuna — é indispensável.
As manifestações de vontade já não se limitam ao papel e à caneta há muitos anos, e o ordenamento jurídico precisa acompanhar a forma como hoje se contratam, comunicam e estabelecem vínculos, papel que já vendo sendo desempenhado pelo Poder Judiciário. Sem essa adequação legislativa, seguiremos com normas concebidas para um mundo analógico a uma sociedade cada vez mais digital, relegando ao Poder Judiciário definir a validade da contratação.
