
Entre a legitimidade e o descrédito: a conduta dos CIIs sob o prisma da responsabilidade
Por: Francisco Petros e Rosana Silva
Com os recentes escândalos corporativos — especialmente aqueles relacionados a lançamentos contábeis decorrentes de fraudes ou de incorreções materiais — assistimos a uma crescente indagação quanto à fragilidade das demonstrações financeiras, cuja credibilidade junto aos stakeholders precisa ser restaurada. Por isso, a forma como esses problemas são tratados importa tanto quanto a responsabilização civil ou sancionatória das partes envolvidas, sobretudo quando o objetivo é compreender os mecanismos utilizados, burlados ou negligenciados que permitiram tais incorreções — ou fraudes contábeis.
Nesse contexto, os Comitês de Investigação Independente (CIIs) exercem função essencial no âmbito da governança corporativa e atuam como instâncias internas destinadas à apuração de fatos relevantes, diante de indícios de fraude, conflitos de interesse ou falhas relevantes nos controles internos. Embora não se equiparem às auditorias independentes ou às autoridades, não podemos olvidar que seus relatórios podem produzir efeitos concretos sobre a forma pela qual a companhia expõe e fundamenta situações de risco, além de impactar decisões técnicas e jurídicas adotadas por auditores, autoridades reguladoras, órgãos do Poder Judiciário e demais stakeholders.
A atuação do CII como parte do sistema de integridade e transparência da companhia logo assume uma função investigativa com repercussões patrimoniais, reputacionais e regulatórias. Por isso, desde a constituição, o desenvolvimento dos trabalhos deve atender a critérios mínimos de fidedignidade, tais como comportamento ético, imparcialidade e qualificação técnica, a fim de promover a esperada segurança jurídica e robustez técnica.
Quando os relatórios produzidos por Comitês de Investigação Independente carecem de escopo definido, apresentam lacunas de conteúdo, ausência de rastreabilidade ou conclusões ambíguas, comprometem a finalidade a que se destinam. A inobservância de critérios mínimos de fidedignidade — notadamente quanto à diligência, à independência e à técnica — vulnera a função institucional do comitê e esvazia sua legitimidade. Situações em que se verifica omissão deliberada ou atuação voltada à proteção indevida de administradores e conselheiros, ainda que por imprudência, negligência ou imperícia, devem ser interpretadas como infrações relevantes à confiança que sustenta o papel do CII na estrutura de governança, com evidente desvalor social e jurídico.
Do ponto de vista legal, ainda que o Comitê de Investigação Independente (CII) não constitua órgão formalmente previsto na legislação societária, sua atuação deve observar os princípios da governança corporativa e as normas técnicas aplicáveis, sobretudo quando envolver matérias contábeis ou de conformidade regulatória. Nessa perspectiva, os princípios que orientam a conduta dos administradores e dos órgãos auxiliares de governança em companhias abertas — como o dever de diligência, o dever de lealdade e a boa-fé objetiva — revelam-se plenamente exigíveis frente à função desempenhada pelo CII.
A evolução do precedente norte-americano estabelecido no caso In re Caremark International Inc. Derivative Litigation (Delaware Court of Chancery, 1996) lança luz sobre a expansão da responsabilidade dos fiduciários, especialmente quando sua conduta se revela marcada por desrespeito consciente às normas ou má-fé, resultando nos denominados traumas corporativos¹. Ainda no campo da ampliação da responsabilização, alterações normativas recentes — como a revisão da Regra 3502 pelo PCAOB (Public Company Accounting Oversight Board) — passaram a admitir a responsabilização de indivíduos por condutas negligentes que contribuam, de forma direta e substancial, para a prática de infrações legais no âmbito empresarial².
Esses avanços normativos e jurisprudenciais, ainda que internacionais, convergem para uma compreensão mais abrangente do dever fiduciário e da responsabilidade a ele inerente, reconhecendo que a atuação de instâncias internas – ainda que não vinculadas formal ou legalmente – pode ensejar consequências jurídicas sempre que assumirem funções relevantes de supervisão, apuração ou gestão de riscos. Nesse contexto, a responsabilização dos Comitês de Investigação Independente não configura construção meramente teórica ou remota; ao contrário, revela-se cada vez mais tangível a possibilidade de responsabilização civil e regulatória de seus integrantes, quando identificadas omissões, falhas metodológicas ou vieses deliberados no desempenho de suas atribuições.