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6 de junho de 2025

A Independência que Impulsiona a Governança Corporativa

Por: Francisco Petros

Cabe ao conselheiro erigir, sobre ele, um edifício de integridade visível, talhado na transparência, na curiosidade disciplinada e na coragem de reconhecer limites.

No âmbito da governança corporativa brasileira — onde a Lei 6.404/76, a Resolução CVM 80/2022 e o Regulamento do Novo Mercado da B3 desenham os contornos formais da independência — talvez valha lembrar que o verdadeiro exercício desse atributo raramente cabe inteiramente ao texto normativo. Ser independente “de fato”, e não apenas “de direito”, requer um trabalho contínuo de autovigilância ética. Convém, pois, que o conselheiro trate a própria condição como prática deliberada, não como diploma já conferido.

Antes mesmo da eleição, pode ser prudente elaborar um mapa de possíveis conflitos, indo além da lista de impedimentos do art. 6º da RCVM 80. Relações profissionais pretéritas, amizades duradouras e mesmo expectativas futuras de negócio tendem a influenciar percepções sutis. Registrar tais nexos — ainda que aparentemente inofensivos — permite ajustá-los à luz do colegiado e, se necessário, abster-se preventivamente de certos temas. A independência prospera quando não há surpresa alguma sobre seus contornos.

Durante as reuniões da governança corporativa, recomenda-se que o conselheiro cultive o hábito de questionar a suficiência das informações postas sobre a mesa. Pedir dados comparativos, exigir a presença de executivos técnicos, solicitar pareceres externos não deveria ser visto como gesto de desconfiança pessoal, mas como prática rotineira de diligência. Ao fazê-lo, importa adotar um tom informativo, jamais acusatório, pois a autoridade moral do independente reforça-se quando a curiosidade se alia à cortesia.

Nas decisões críticas — operações com partes relacionadas, políticas de remuneração, distribuição de dividendos extraordinários — vale registrar por escrito, com parcimônia e foco, os fundamentos do voto. Essa disciplina documental serve não apenas de escudo jurídico, mas também de memorial intelectual: revisitá-lo em ciclos de estratégia permite aferir coerência de critérios ao longo do tempo. Se o contexto exigir dissenso, pode ser salutar transformar o voto divergente em proposta alternativa, indicando caminhos viáveis para mitigar riscos percebidos; assim, o ato de discordar converte-se em contribuição concreta ao processo decisório.

O conselheiro independente talvez queira adotar uma lógica de “dupla materialidade” na leitura dos relatórios de auditoria e de sustentabilidade: de um lado, a relevância financeira direta; de outro, os impactos reputacionais ou regulatórios que, ainda difusos, podem fragilizar a companhia. Essa perspectiva — hoje embutida nas demandas ESG e nos pronunciamentos da IOSCO — ajuda a romper a tentação de olhar apenas o curto prazo, corriqueiramente reforçada por métricas de desempenho trimestral.

Para reduzir o risco de “captura cognitiva”, recomenda-se a construção de rotinas de aprendizagem externa: participação em programas de educação contínua, interação estruturada com analistas de mercado e, sobretudo, diálogo periódico com diferentes públicos de interesse. Não se trata de desaguar confidências, mas de aferir como a estratégia corporativa ressoa fora do perímetro executivo. A independência ganha fôlego quando confrontada com perspectivas diversas.

Cabe ainda ao conselheiro cultivar uma intimidade básica com temas tecnológicos — inteligência artificial, cibersegurança, proteção de dados —, pois é nesses domínios que conflitos de interesse tendem a aparecer de maneira mais opaca. Solicitar auditorias especializadas ou testes de robustez de modelos algorítmicos pode parecer pretensão excessiva, mas evita, lá na frente, a alegação de ignorância culposa em eventual incidente de segurança ou discriminação automatizada.

Por fim, talvez seja oportuno normalizar a ideia de rotação: não a rotatividade mecânica, desconectada de mérito, mas a renovação periódica que devolva frescor crítico ao conselho. A prática de convidar independentes para mentorias cruzadas ou para avaliações externas de desempenho contribui para esse arejamento, sem abrir mão da memória institucional indispensável à estabilidade.

Se esses cuidados forem incorporados como rotina — e não como exceções heroicas —, a independência deixará de ser requisito burocrático para tornar-se fator estruturante da qualidade decisória. A CVM e a B3 estabelecem o alicerce normativo; cabe ao conselheiro erigir, sobre ele, um edifício de integridade visível, talhado na transparência, na curiosidade disciplinada e na coragem de reconhecer limites. Essa postura, embora não imunize contra todos os riscos, aproxima-o da concepção mais elevada de responsabilidade fiduciária: a de quem guarda, no mesmo gesto, o interesse da companhia, a confiança do investidor e a própria consciência.