Atenção credores: prescrição intercorrente e dignidade humana
Há alguns meses chamamos a atenção para uma das alterações processuais impostas pela Lei 14.195/21, em especial aquela relacionada ao termo inicial para a contagem da prescrição intercorrente (1).
Oportuno destacar que todas as ressalvas feitas à época, tanto quanto à importância do instituto da prescrição intercorrente, que busca evitar a eternização das demandas, como quanto à necessidade de que os credores planejem de maneira efetiva a perseguição dos bens do executado para que as chances de êxito sejam reais, seguem as mesmas.
Pois bem, passados alguns meses, considerações complementares passam a ser mais do que necessárias, principalmente quando identificamos que referidas alterações impostas pela nova Lei foram introduzidas para valoração do Judiciário.
Há alguns dias o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao analisar pedido de tutela em sede de Agravo de Instrumento, que visava impedir o início da contagem da prescrição, deferiu tutela para suspender os efeitos da decisão agravada, na medida em que, em tese, padeceriam de inconstitucionalidade as novas regras da prescrição intercorrente, pois foram introduzidas no artigo 921 do Código de Processo Civil – CPC pela MP 1.040/2021, convertida na Lei 14.195/2021, ante à vedação expressa no art. 62, § 1º, I, b, da Constituição Federal, que veda alterações no CPC via Medida Provisória (2).
Independentemente da relevantíssima discussão sobre a constitucionalidade da Lei, discussão esta que já havíamos antecipado e que o Tribunal de Justiça de São Paulo já começou a enfrentar, o impacto de ordem moral é o que mais preocupa, exatamente porque a alteração legislativa impõe, ainda que indiretamente, conceitos que vão na contramão do que tem se buscado nos últimos anos: defesa da cidadania, da dignidade da pessoa humana e, em última análise, da igualdade.
Apenas para contextualizar e exemplificar a referida busca citada, a Lei nº 14.181/21 (“Lei do Superendividamento”), em vigor desde julho de 2021, fez alterações no Código de Defesa do Consumidor e no Estatuto do Idoso para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento com, dentre outras previsões, educação financeira.
Poderíamos aqui trazer diversas outras alterações legislativas já implementadas ou ainda em discussão que buscaram nos últimos dez anos (3) ampliar o rol principiológico no ordenamento jurídico brasileiro que impacta direta e positivamente visando a permitir que não só as próximas gerações, mas principalmente a atual, prestigiem e implementem a defesa da cidadania e da dignidade da pessoa humana ou jurídica (4).
Ora, é exatamente sobre referidos pontos principiológicos que parece haver uma ruptura, de ordem moral, entre a alteração imposta sobre a prescrição intercorrente nas execuções e os citados ordenamentos jurídicos, na medida em que os devedores estão sendo claramente privilegiados.
Evidente que o devedor executado também deve ser alcançado e protegido pelos princípios já consagrados como o contraditório, ampla defesa, dentre outros e, ainda, certamente a sua cidadania e dignidade, ainda que da pessoa jurídica, devem ser protegidos.
Todavia, embora a Lei tenha sido promulgada sob égide de aprimorar o ambiente de negócios, sem adentrar no mérito das demais alterações, a ampliação das hipóteses que resultam no termo inicial da prescrição intercorrente, alterações implementadas no artigo 921 do CPC, na prática resultam em proteção desarrazoada do devedor em detrimento do credor que busca, legalmente, a satisfação do seu crédito.
Com ares de contradição principiológica, é exatamente esse excesso de zelo prático que preocupa e gera a presente discussão, na medida em que ao mesmo tempo em que os conceitos de cidadania, dignidade da pessoa humana/jurídica e até mesmo incentivos à educação financeira são fomentados, não parece ser a melhor prática privilegiar devedores e restringir o direito dos credores ao dar fôlego ou saída alternativa aos devedores via prescrição intercorrente, ainda mais com um gatilho para seu termo inicial tão precoce.
Os impactos de referida alteração e, evidentemente, sua legalidade seguirão sendo objeto de pesquisa e acompanhamento para que o Judiciário siga sendo opção para a solução de conflitos e dê respaldo aos credores que, aliás, também devem ser alcançados pelo princípio da dignidade e igualdade.
(1) https://fflaw.com.br/atencao-credores/
(2) TJSP – AI nº 2260997-96.2021.8.26.0000
(3) Lei nº 12.846/13 (Anticorrupção) e Lei nº. 13.709/18 (Proteção de Dados).
(4) CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W., STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.