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27 de maio de 2024

Neurodireitos no anteprojeto do Código Civil

Por: Elisa Figueiredo e Renan Lopes

No último dia 17 de abril o Senado recebeu o anteprojeto do Código Civil, concebido por uma comissão de 38 juristas. A proposta tem o objetivo de preencher lacunas e corrigir obsolescências presentes no atual código, que já conta com mais de 20 anos.

O texto consolidado propõe importantes alterações em áreas basilares do direito  privado, tratando de temas como direito de família, sucessões, contratos empresariais, responsabilidade civil , direitos da personalidade, entre outros.

Uma das principais novidades, e talvez a mais inovadora, foi a criação de um livro dedicado especialmente à regulação do chamado Direito Civil Digital. Neste ponto, o texto do anteprojeto regular temas como:

  • Inteligência artificial e seus limites éticos;
  • A proteção da privacidade de dados pessoais;
  • Conceito legal de ambiente digital;
  • Direitos das pessoas naturais ou jurídicas no ambiente digital;
  • Efeitos materiais e a eficácia de atos e contratos digitais;
  • Relação jurídica digital, estabelecida através de atos jurídicos realizados de forma eletrônica;
  • A locação de “coisas” celebradas por meio de aplicativo digital;
  • Patrimônio digital e suas particularidades;
  • A presença e identidade de crianças e adolescentes em ambiente digital;

Dentre outras importantes contribuições deste título, consideramos bastante pertinente a seção dedicada aos neurodireitos, definidos no anteprojeto como proteções que visam a preservar (i) a privacidade mental, (ii) a identidade pessoal, (iii) o livre arbítrio, (iv) o acesso justo à ampliação ou melhoria cerebral, a integridade mental e (v) a proteção contra vieses, das pessoas naturais, a partir da utilização de neurotecnologias.

A definição sugerida pela comissão para os neurodireitos mostra bastante afinidade com as 4 (quatro) prioridades éticas apresentadas ao mundo pelo artigo denominado Four Ethical Priorities for Neurotechnologies and AI[1], publicado em novembro de 2017 na revista Nature e assinado por um grupo de 27 cientistas, entre eles o espanhol Rafael Yuste, um dos idealizadores da iniciativa BRAIN  e fundador da NeuroRights Foundation, considerado o “pai da neurociência moderna”.

O tema soa futurista para alguns, mas as primeiras menções a neurodireitos surgiram em 2011, na Inglaterra, e vem ganhando maior relevância desde o ano de 2013.

Desde essa época, acadêmicos de diferentes países, pesquisadores no campo da bioética e inteligência artificial chamam a atenção do mundo para os perigos do uso comercial da neurotecnologia.

É crescente a fabricação de dispositivos tecnológicos que podem mapear a atividade cerebral e registrar informações neurais no cérebro sem necessidade de neurocirurgia, usados como simples assessórios, como óculos, arcos, fones de ouvido ou pulseiras.

Assim, é cada vez mais cotidiano o tratamento de dados neurais por empresas e Governos, informações estas que, uma vez estruturadas, possibilitam ao detentor, com o auxílio de outras ferramentas, padronizar e influenciar o comportamento dos indivíduos.

Os contratos e termos de uso firmados digitalmente com empresas detentoras dessas tecnologias são semelhantes aos que se firmam com provedores de internet. Em um clique, o usuário anui e transfere a propriedade desses dados, sem ter ideia das implicações.

Nesse contexto, com maior força a partir de 2017, os debates sobre esta nova categoria de direitos relativos a dados neurais e à proteção da identidade humana vem ganhando força e já promoveu alterações legislativas significativas na União Europeia, China, Japão, Austrália, Coreia do Sul, Canadá, Austrália e Israel, assim como impactaram organizações como OEA, ONU e UNESCO.

Na Espanha, os neurodireitos foram incorporados à  Carta de Direitos Digitais, que busca orientar o uso responsável das neurotecnologias. Em 25 de outubro de 2021, o Chile emendou sua Constituição Federal para contemplar o direito à neuroproteção entre os direitos fundamentais.

No Parlamento europeu também tramita o IA Act, que dispõe sobre a limitação de sistemas capazes de prejudicar ou manipular indivíduos ou que explorem suas eventuais vulnerabilidades.

No Brasil, existe uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 29/2023) em trâmite, cuja pretensão é alterar o texto da Constituição Federal para incluir, entre os direitos e garantias fundamentais do artigo 5º, a proteção à integridade mental e à transparência algorítmica.

Portanto, embora o debate sobre o assunto, a nível nacional, ainda não esteja tão difundido, nos pareceu oportuna e bem direcionada a inclusão do tema no anteprojeto, especialmente se vista como um ponta pé inicial, sem adentrar o mérito dos regramentos em específico.

[1] Four ethical priorities for neurotechnologies and AI | Nature