O duplo grau de jurisdição administrativa à luz das restrições de acesso ao CARF
Não se pretende discutir aqui as mudanças referentes às limitações (patrimoniais) de acesso ao CARF¹, mas a validade jurídica delas. Em outras palavras, se o valor do crédito tributário objeto de discussão pode ser uma barreira de entrada à segunda instância administrativa (CARF).
A princípio, para perquirir tal validade, faz-se necessário aferir se existe alguma previsão constitucional de duplo grau de jurisdição na seara administrativa. Ao se analisar o texto constitucional, em especial inciso LV do artigo 5º, extrai-se que é assegurado, aos litigantes do processo administrativo, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
A questão primordial é em relação ao termo “recursos”, se este já contempla o direito de acesso à segunda instancia ou não. Ou seja, se o termo está imbuído no sentido técnico processual (recurso na acepção jurídica) ou apenas na acepção comum (atécnico), mais ligado à ideia (sinônimo) de forma, maneira. De todo modo, caso se interprete tal terminologia na acepção comum, o texto constitucional, do ponto de vista linguístico (até com o viés de uma interpretação mais literal), estaria maculado pelo pleonasmo, já que repetiria o termo anterior (meios) com outras palavras.
Assim, pelo raciocínio acima, poderia entender que a Carta Magna também garante o duplo grau de jurisdição administrativo. Conduto, esse entendimento não coaduna com o posicionamento do STF.
Desde a promulgação da Constituição Federal, o STF tem o entendimento de que não se insere, na Carta de 1988, qualquer garantia do duplo grau de jurisdição administrativa (RE 169.077/MG). Apesar do entendimento consolidado, tal questão voltou à tona com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 1.976/DF, de relatoria do Min. Joaquim Barbosa, na qual se discutia a inconstitucionalidade de se exigir garantia prévia como condição de acesso ao recurso administrativo.
Naquele julgamento, no entanto, conforme se depreende expressamente do voto do relator, não se enfrentou diretamente a questão da existência da segunda instância administrativa (garantia do duplo grau de jurisdição), mas, sim, o acesso a ela. Basicamente, chegou-se à conclusão de que existindo a previsão de recurso na legislação pertinente, é um direito do administrado ter acesso a ele, sem qualquer empecilho, em vista do direito de petição e do contraditório.
Voltando-se à redação do mencionado inciso LV do artigo 5º da Carta Magna, a parte final dele (“recursos a ele inerentes”) estaria em harmonia com o entendimento do STF no julgamento do ADI 1.976/DF, pois condicionaria a possibilidade de recurso a previsão legal dele, por meio do termo inerentes (ideia de existência prévia).
Depois desse julgamento, o entendimento do STF se manteve quanto à inexistência de garantia constitucional ao duplo grau de jurisdição na seara administrativa, acrescentou-se, entretanto, a necessidade de também inexistir previsão legal de recurso na legislação pertinente (MS 34.472 AgR). Em suma, pelo entendimento atual do STF, não há garantia constitucional de duplo grau de jurisdição administrativa, mas, se existe, é um direito o acesso à segunda instância.
Nessa conjuntura, é possível contestar novamente a validade jurídica das limitações de acesso ao CARF, pois, de fato, não há uma garantia de duplo grau de jurisdição, mas existindo o acesso a ele é um direito do administrado. Não se pode negar que, no âmbito da legislação do processo administrativo federal, há previsão expressa de recurso (voluntário) voltado à segunda instância.
Logo, com base no entendimento do STF, as limitações de acesso à segunda instância (CARF) não se sustentariam por si só, haja vista a possibilidade de recorrer dentro do próprio sistema a uma instância hierarquicamente superior (previsão legal de recurso ao CARF).
Ademais, seguindo até o raciocínio consignado pelo Ministro Joaquim Barbosa no julgamento do ADI 1.976/DF, não pode a legislação criar uma discriminação (discrímen) infundado em detrimento do administrado, a fim de tolher o seu direito à segunda instância.
Ao limitar o acesso ao CARF em razão do valor do crédito tributário, a legislação pertinente criou uma barreira infundada, sem qualquer correlação lógica que justifique o discrímen adotado. Utilizar valores patrimoniais como fator de delimitação de acesso ao CARF não encontra qualquer base axiológica no postulado da razoabilidade.
Isso porque, ao utilizar o valor do crédito como barreira de acesso à segunda instância, a legislação privilegia, em regra, grandes contribuintes em detrimento de pequenos, sem considerar o impacto daquela discussão empiricamente – ainda que o valor da discussão seja menor, a sua repercussão pode ser proporcionalmente maior, ao depender do tamanho do contribuinte; por exemplo, uma autuação de milhões de reais pode não impactar um grande contribuinte, enquanto uma autuação de 100 mil reais pode arruinar outras.
Nota-se que a nova limitação imposta, sob a justificativa de reduzir cerca de 70% da quantidade de processos encaminhados ao CARF², pretende, deveras, privilegiar a “oligarquia” dos grandes contribuintes. Ou seja, ante a ineficiência da Administração Pública de conseguir julgar todos os casos, criam-se barreias de entradas para alguns contribuintes, através de uma delimitação infundada (valor do crédito).
Portanto, considerando-se o entendimento atual do STF, ainda que inexista qualquer garantia de duplo grau de jurisdição, caso haja previsão legal de recurso na legislação pertinente, é um direito do administrado ter acesso à segunda instância, não podendo a Administração Pública utilizar-se de critério infundado para afugentar esse direito.