Reforma do Código Civil: como ficará a responsabilidade patrimonial no tocante à penhora do bem de alto padrão?
Bruno Maglione e Victória Soranz
Desde a sua promulgação, a Lei 8.009/90[1] tem se consolidado como uma salvaguarda para a proteção da moradia ao definir o bem de família para fins de aplicação da regra da impenhorabilidade. De acordo com o artigo 5º da referida lei, considera-se bem de família “o único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente”.
Com o passar dos anos esse conceito foi ampliado para incluir a construção, as plantações, as benfeitorias, os móveis que guarnecem a residência e todos os equipamentos, mesmo que destinados a uso profissional, desde que quitados.
No entanto, o que deveria servir como fundamento para a proteção da moradia passou a ser utilizado como uma brecha para a blindagem patrimonial, prejudicando o pagamento de dívidas que estariam abrangidas pelo artigo 1º da mesma lei.[2]
A falta de clareza na legislação abre espaço para as mais diversas interpretações, especialmente no tocante à penhora de imóveis avaliados em valores expressivos. Nesse contexto, não parece razoável que um credor tenha que aceitar a frustração de seu crédito diante de um devedor que, apesar de manter um elevado padrão de vida e ser proprietário de um único imóvel de expressivo valor, tenha esse bem resguardado pela impenhorabilidade.
A complexidade do tema levou a comissão de juristas a propor, no anteprojeto de reforma do Código Civil, a inclusão do art. 391-A[3]. Um dos pontos mais sensíveis da proposta concentra-se na regulação de seu parágrafo terceiro[4], o qual propõe a inclusão da possibilidade de afastamento da impenhorabilidade mesmo contra a regra geral do inciso I do § 1º[5], em caso de imóvel de alto padrão.
O novo texto apresentado visa estabelecer a mitigação da impenhorabilidade de imóveis de alto valor aquisitivo desde que seja reservada metade do valor obtido com a arrematação para a aquisição de um novo imóvel destinado ao devedor e sua família. Isso, em tese, permitirá um equilíbrio entre a proteção à moradia e a satisfação da dívida.
No entanto, mesmo que a proposta seja aprovada nos exatos termos apresentados, a insegurança jurídica persistirá, uma vez que a interpretação literal da lei não especifica quais critérios serão considerados para a definição do conceito de imóvel de alto padrão. Dentre os fatores que poderiam influenciar essa qualificação, destacam-se o valor venal da propriedade, a proporção da dívida em relação ao valor de mercado do imóvel, sua localização em áreas nobres, a metragem, além do padrão das construções e benfeitorias.
Caso aprovado nestes moldes, a nova redação do Código Civil certamente impactará o atual entendimento dos Tribunais, destacando que o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça – STJ segue sendo no sentido de que, independentemente do elevado valor econômico, a impenhorabilidade do bem de família é irrefutável.
Segundo o STJ, “basta que o imóvel sirva de residência para a família do devedor, sendo irrelevante o valor do bem. Isso porque as exceções à regra de impenhorabilidade dispostas no art. 3º do referido texto legal não trazem nenhuma indicação nesse sentido. Logo, é irrelevante, a esse propósito, que o imóvel seja considerado luxuoso ou de alto padrão”[6].
Assim, é imprescindível ressaltar que a categorização de “alto padrão” não deve ser o único foco da análise em relação à impenhorabilidade. A abordagem legislativa deve transcender a mera classificação, buscando uma compreensão mais abrangente da realidade vivida pelo devedor. A proteção da moradia digna deve ser equilibrada com as obrigações financeiras, evitando punições excessivas que comprometam a dignidade do indivíduo e de seus familiares, além de garantir que seus direitos sejam respeitados, independentemente do valor de seus bens.
Dessa forma, diante das complexidades e controvérsias que envolvem a impenhorabilidade de bens de luxo, é essencial que o novo texto legislativo trate o tema com clareza e rigor. A definição de critérios objetivos não apenas reforçará a proteção da moradia digna, mas também criará um ambiente jurídico mais confortável e alinhado às expectativas dos credores, razão pela qual o tema deve ser acompanhado de perto para evitar surpresas quando da sua aprovação final.
[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8009.htm
[2] Art. 1º da Lei nº 8.009 – “O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.”
[3] Art. 391-A – “Salvo para cumprimento de obrigação alimentar, o patrimônio mínimo existencial da pessoa, da família e da pequena empresa familiar é intangível por ato de excussão do credor.”
[4] Art. 391-A, § 3º – “A casa de morada de alto padrão pode vir a ser excutida pelo credor, até a metade de seu valor, remanescendo a impenhorabilidade sobre a outra metade, considerado o valor do preço de mercado do bem, a favor do devedor executado e de sua família.”
[5] Art. 391-A., § 1º, inciso I da Lei de revisão e atualização da Lei nº 10.406 (Código Civil) – “a casa de morada onde habitam o devedor e sua família, se única em seu patrimônio.”
[6] STJ – AgInt no AREsp: 2456158 SP 2023/0297276-1, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 15/04/2024, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/04/2024