Responsabilidade civil das ‘coisas’ e perfil falso no Facebook
Supremo decidirá se artigo 19 do Marco Civil da Internet é ou não inconstitucional
por Elisa Junqueira Figueiredo e Marcus Swenson de Lima
A chamada Quarta Revolução Industrial está apenas no início, mas já é possível observar em seu horizonte que antigos e conhecidos problemas, como a responsabilização civil por atos ilícitos praticados por terceiros, continuarão ocorrendo, só que agora em um cenário ainda mais difícil e complexo, uma vez que os “terceiros” poderão ser também máquinas, robôs, algoritmos e softwares. Se antes, isso parecia ser coisa de Hollywood, hoje, em maior ou menor grau, é parte de nossa realidade. Ao menos nos noticiários.
Não é de agora que as pessoas têm o (péssimo) hábito de prejudicar umas às outras. Embora esse comportamento maléfico não seja culpa da internet, é fato que a world wide web impulsionou esse comportamento destrutivo, acobertada por um suposto manto do anonimato e de impunidade. Se antes da internet as intrigas se limitavam a pequenos círculos – familiares, amigos, vizinhos, colegas da escola ou do trabalho – na atualidade, com as redes sociais, as intrigas podem viralizar. E muito rápido. Imagine softwares criando notícias falsas sobre uma determinada pessoa (alguém que esteja disputando um cargo eletivo, por exemplo), influenciando diretamente na decisão dos eleitores e no resultado da eleição. Você sabe que isso já é uma realidade, vale lembrar dos recentes escândalos envolvendo o Facebook, a Cambridge Analytica e a eleição americana de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos. Com a proximidade das eleições no Brasil, as fake news se tornam o foco das atenções e o receio de também ocorrerem por aqui é enorme. E inevitável, diríamos.
Saindo do campo das hipóteses para a realidade, mas ainda com o “fake” em mente, o Supremo Tribunal Federal (STF) está para julgar um caso sobre a criação de um perfil falso em rede social. Trata-se do Recurso Extraordinário 1.037.396 SP, envolvendo Facebook Serviços Online do Brasil vs Lourdes Pavioto Correa. Em meados de 2014, ao saber da existência de um perfil falso criado em seu nome na rede social Facebook, Lourdes Pavioto Correa notificou a empresa informando que o perfil criado em seu nome não havia sido criado por ela, que este falso perfil vinha sendo utilizado para denegrir sua imagem, bem como a imagem de seus familiares e amigos, utilizando palavras de baixo calão e fatos não verdadeiros. Na mesma notificação Lourdes solicitou então que a página com seu perfil fosse imediatamente retirada do ar, pois estas atitudes não deveriam ser permitidas pelo Facebook.
Em resposta à Lourdes, o Facebook explicou que não poderia excluir o suposto perfil falso sem uma determinação judicial, fundamentando sua argumentação no artigo 19 do Marco Civil da Internet que estabelece que “com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.
Após ter seu pedido negado pelo Facebook, Lourdes propôs uma ação judicial, em novembro de 2014, contra o Facebook. Seus pedidos foram basicamente três, que o poder judiciário determinasse a empresa a imediata exclusão do perfil falso criado em seu nome e sem sua autorização, a indenizasse pelos danos morais sofridos e também que fornecesse o IP (Internet Protocol – uma espécie de endereço eletrônico de cada computador conectado à rede mundial de computadores) do criador do falso perfil. Em sua defesa o Facebook alegou não ser a responsável por analisar ou fiscalizar os conteúdos inseridos em sua rede pelos usuários e, novamente, não lhe ser permitida a exclusão de conteúdo de suas páginas, sem determinação judicial específica, pois, do contrário, estaria praticando a censura e impondo limites à liberdade de expressão, conforme dispõem os artigo 18 e 19 da Lei 12.965 – e que, portanto, não seria cabível sua condenação para indenizar a autora em danos morais, pois cumpriu rigorosamente o que à lei específica para a matéria estabelece.
A decisão de primeira instância foi parcialmente favorável as duas partes: à autora, que conseguiu a determinação judicial para exclusão do perfil falso criado em seu nome e a informação sobre o IP do criador de tal perfil; e ao Facebook, por não ter que indenizar a autora pelos danos morais. O problema das decisões “parcialmente procedentes” como esta é que, na maioria das vezes, desagradam as duas partes, que recorrem da decisão no que lhes são desfavoráveis. E foi o que aconteceu neste caso, a autora Lourdes recorreu da decisão para obter a reforma da parte que negou seu pedido de indenização e a ré Facebook recorreu para a tentar modificar a parte da decisão que lhe obrigava a informar o IP do criador do perfil falso da autora e causador de todo este imbróglio.
A decisão da 2ª Turma Recursal Cível do Colégio Recursal de Piracicaba – SP modificou em parte a decisão proferida pelo juiz de 1º grau, condenou a empresa ré
a indenizar a autora pelos danos morais sofridos, mas desobrigou-a de fornecer o IP do criador do perfil falso em nome da autora. As partes permaneceram descontentes com a decisão e mais uma vez recorreram, só que agora ao STF, onde permanece, ainda sem data prevista, para ser julgado.
O que poderia parecer insignificante, à primeira vista, é de extrema importância, tanto que o próprio STF já reconheceu a repercussão geral da matéria, o que significa que o que for decidido neste caso, servirá de base para outros casos semelhantes que surgirem nos tribunais brasileiros. Será o primeiro caso deste tipo a ser decidido pelo órgão colegiado máximo do País após a entrada em vigor da Lei 12.965, em junho de 2014, que ficou conhecida como o Marco Civil da Internet. A Corte decidirá se o artigo 19 desta lei deverá ou não ser declarado inconstitucional. O artigo 19 estabelece, em linhas gerais, que os provedores de aplicações de internet não estão autorizados a excluir conteúdo de suas páginas, sem uma determinação judicial específica, a fim de se evitar a censura e a liberdade de expressão, práticas vedadas pelos artigos 5º, incisos IV, IX e XIV, e 220, caput e §§ 1º e 2º, da Constituição Federal.
O que vier a ser decidido pelo STF será norteador não só para as questões envolvendo a possibilidade de os provedores de aplicações de internet serem (ou não) responsabilizados por danos causados por terceiros, como acreditamos que também servirá para indicar sobre a aplicabilidade do instituto da responsabilidade civil quando não for possível identificar o(s) responsável(eis) pelo dano ou se, embora identificado ou identificável, não tenha personalidade/capacidade jurídica para responder por ele, como nos casos das máquinas, cada dia mais “autônomas”.
Ainda é incipiente a preocupação sobre esse tema, mesmo fora do Brasil, mas é necessário que as conversas, os estudos, as teses sejam iniciadas. Em março último, vimos a notícia sobre um acidente com uma vítima fatal envolvendo um veículo autônomo que estava em testes, nos Estados Unidos. A empresa desenvolvedora dos testes assumiu toda a responsabilidade pelo acidente, muito embora a vítima também tivesse sua parcela de culpa, ao atravessar a rua fora da faixa. Mas e quando não for tão simples, como nesse trágico acidente, determinar de quem foi a culpa pelo dano causado a outrem?