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6 de junho de 2023

Shakespeare leu Pacioli

“Sabes que está no mar quanto possuo. Dinheiro ora não tenho, nem disponho, nesta ocasião, de nada com que possa levantar qualquer soma. Sai a campo; põe à prova meu crédito em Veneza.” Assim inicia a última fala de Antônio, o mercador de Veneza, no primeiro ato da peça escrita por Willian Shakespeare, provavelmente no ano de 1596. A intenção de Antônio é “financiar” o seu amigo Bassânio, que pretende candidatar-se a marido de Pórcia, mas, para tanto, precisa oferecer significativo dote por sua mão.

Embora rico, Antônio não dispõe de dinheiro em espécie para ajudar o amigo, tendo em vista que seus recursos estão nos navios que foram às Índias Orientais buscar especiarias para serem comercializadas em Veneza, principal centro mercantil europeu da época. O rico mercador, então, recorre ao seu crédito para afiançar um empréstimo a ser concedido ao seu amigo apaixonado. Nota-se que a sua confiança (crédito) será colocada à prova, como substituição à riqueza tangível.

Praticamente cem anos antes, em 1494, na mesma Veneza, o frei franciscano Luca Pacioli escreveu “Particularis computis et scripturis”, que é considerado o texto do qual nasceu a contabilidade. No primeiro capítulo desse texto, o frade menor escreve: “Aconteceu que muitos sem capital, mas cujo crédito era bom, realizaram grandes transações e, por meio de seu crédito tornaram-se muito ricos. Nas grandes repúblicas nada é considerado superior do que a palavra do bom mercador [comerciante], e juramentos foram afiançados na palavra de um bom mercador. Nessa confiança repousou a fé que tinham na garantia do mercador correto. E isso não é estranho, porque, de acordo com a religião cristã, somos salvos pela fé, e sem ela é impossível agradar a Deus.” Como se vê, o mercador de Veneza de Shakespeare ajusta-se perfeitamente ao bom mercador descrito por Pacioli.

O que importa ser percebido aqui é que nos primórdios do capitalismo, em Veneza do Século XV, valorizava-se, sobremaneira, a confiança. Em decorrência disso, ou seja, para promover essa confiança, a república veneziana estruturou um dos mais evoluídos sistemas políticos e judiciais da época, praticados no Palácio do Duque. A lição que o PIB brasileiro de cinco séculos depois deveria tirar disso é que, havendo confiança entre os atores do comércio e as instituições, o desenvolvimento econômico é inexorável.

É bem verdade que, recentemente, no Brasil, algumas iniciativas têm contribuído para a manutenção e a elevação da confiança dos e nos atores comerciais. O mercado de capitais caminhou a passos largos desde a primeira metade dos anos 2000, tendo nele ingressado muitas empresas e significativos investidores, inclusive pessoas físicas. Essa transformação foi possível, inicialmente, pela autorregulação, com destaque para a criação do Novo Mercado, o mais alto nível de governança corporativa do mercado brasileiro.

Nesse processo de fortalecimento da confiança dos e nos “mercadores brasileiros”, foram importantes também algumas mudanças legislativas, obtidas pela pressão das partes envolvidas, a saber: empresas, órgãos reguladores, investidores institucionais (fundos de pensão incluídos) e associações de interesses específicos. Falando nas lições do frei Pacioli, merece destaque o novo marco regulatório da contabilidade. Em 2007, por meio da Lei n° 11.638, o direito contábil brasileiro foi profundamente modificado, no sentido da sua inserção ao mercado globalizado, por meio da adoção dos padrões internacionais das demonstrações financeiras (em inglês: International Financial Reporting Standards – IFRS).

E o fundamento do IFRS é a promoção da confiança nas informações prestadas pelas empresas, especialmente, mas não exclusivamente, as companhias que têm suas ações negociadas em bolsa. Para se ter uma ideia, todas as decisões do órgão responsável por definir como serão elaboradas e divulgadas as informações financeiras, com sede em Londres (terras de Shakespeare), são tomadas na mais absoluta transparência. Há um “acordo moral” entre seus 15 membros que quando oito ou mais estiverem reunidos informalmente, fica proibida a discussão de assuntos técnicos, para que a maioria do colegiado não se influencie fora das reuniões deliberativas (transmitidas ao vivo pela internet).

A incorporação do padrão internacional de informações financeiras (IFRS) provocou uma mudança cultural nos agentes do mercado brasileiro, que não se limita, como a princípio possa parecer, à relação das empresas com seus administradores ou sócios (atores mais diretamente envolvidos com as demonstrações contábeis). A confiança gerada pela adequada prestação de contas, hoje, caminha para estar presente em praticamente todos os relacionamentos da empresa, desde clientes, fornecedores e empregados, passando pelo Fisco, até a comunidade do seu entorno (responsabilidade social). Seja de maneira espontânea ou em decorrência da pressão sofrida, as companhias estão mais atentas à construção e à manutenção da sua confiança.

Já do outro lado do balcão, isto é, por parte das instituições públicas, a desconfiança depositada nos “mercadores brasileiros” tem comprometido o investimento, quer externo quer interno, e, por consequência, o desenvolvimento econômico do País. São exemplos dessa postura incrédula dos órgãos públicos a falta de visão de longo prazo e de planejamento coerente e integrado entre diversas áreas, o Poder Judiciário moroso e imprevisível e o sistema tributário esquizofrênico. Como corolário, a ausência de uma política industrial consistente é substituída pelo arremedo de incentivos fiscais específicos, que tornam o cumprimento da legislação duvidoso e, por isso, sujeito a contingências futuras, passíveis de aplicação de multa.

Veja-se a seguinte incoerência: o Brasil conta com o mais avançado sistema eletrônico do mundo, denominado Sistema Público de Escrituração Digital – SPED. Nesse sistema são registradas, praticamente just in time, todas as notas fiscais emitidas eletronicamente pelas empresas, o que significa também o registro das notas fiscais eletrônicas recebidas, além de todos os lançamentos nos livros contábeis, propiciando o arquivamento eletrônico das informações a serem prestadas pelas empresas. Ocorre que ainda há redundância de informações e o consumo de milhares horas de trabalho por ano no compliance tirbutária das empresas: o que explica essa situação?

Shakespeare, sem dúvida um dos maiores escritores de todos os tempos, aprendeu a lição quinhentista de Pacioli: a confiança é ingrediente fundamental para o desenvolvimento econômico. No Brasil de hoje, estamos implementando a cultura de confiança das terras shakespearianas, ao menos no direito contábil, ao prever a adoção do padrão internacional de contabilidade. Restará estender essa cultura à raiz das instituições brasileiras como um todo.

Para concluir, voltemos a Shakespeare, particularmente a outro indício dos seus estudos sobre o desenvolvimento do comércio: Luca Pacioli teria escrito seu tratado sobre matemática, no qual consta o mencionado capítulo sobre contabilidade, quando ensinava a arte da mercancia e as técnicas para o seu controle a dois filhos de um próspero e conhecido comerciante veneziano. Qual o nome desse conhecido comerciante? Antonio, tal como a personagem shakespeariana.